O chupa-cabra de Florianópolis
Poderia haver lugar melhor do que a chamada “Ilha das Bruxas” para o surgimento de um chupa-cabra? Abril de 2007, o tempo ainda estava quente e a temporada de verão dando seus últimos suspiros. Céu aberto e brisa soprando, dia excelente para lavar roupa e faxinar a casa. Ao menos foi a escolha de minha mãe. Ela e sua fiel escudeira de limpeza, a diarista que mora na casa ao lado, pareciam funcionar à todo o vapor. E o tema do estranho cadáver jogado num terreno baldio da vizinhança começava a temperar a conversa.
O comentário chegou até mim: um animal grande “que não era um cachorro” teria sido abandonado morto alí por perto, jogado num terreno baldio. Era o que o povo da redondeza comentava há alguns dias.
Começando a desfazer o telefone-sem-fio fui atrás da fonte imediatamente anterior à minha mãe: a diarista. O objetivo era descobrir quem havia contado a ela, e assim por diante, até chegar à primeira testemunha – suposta fonte original do relato. Para minha surpresa – e praticidade – ela mesma tinha observado o suposto cadáver. Com paciência contou que há duas ruas de onde estávamos, num terrano baldio grande, praticamente todo de pasto e cercado por um muro de alvenaria de cerca de meio metro de altura havia um corpo coberto por um saco. Os dentes eram humanos, mas o corpo peludo.
– Não está coberto pelo saco?
– Sim, um saco grande.
– Como dá prá ver os dentes?
– Ah, o saco está rasgado, meio esfarrapado. Cobre mais a cabeça, mas está rasgado.
– Mas ele é todo peludo?
– Sim, como um cachorro, só que os dentes são como humanos!
– Pequenos?
– É, dá prá ver bem, a boca é menor do que a de um cachorro, e ele é muito grande pra ser um! Não tem focinho. Úi, sei lá… tava com medo de ser um chupa-cabra, sei lá!
– Tá, mas não pode ser um cachorro grande? São Bernardo, sei lá?
– Não, é maior! Do tamanho de uma pessoa.
A esta altura minha irmã, que é bióloga (e parceira no ceticismo “semi-xiita”) já havia se aproximado para ouvir a conversa. A descrição do animal de tamanho humano, dentes humanos e peludo era por demais interessante para ser abandonada. Mesmo tentando imaginar algum exagero característico dos contos populares a situação ainda continuava sinistra. A história vinha circulando a vizinhança por mais de uma semana, de boca em boca. Só restava conferir. De posse das coordenadas e referências, câmera em punho, seguimos caminhando pela rua de areia.
Cerca de setessentos metros adiante, passando um pouco da metade da rua, encontramos o muro exatamente como referido por nossa testemunha. Um osso jogado na rua pouco antes do terreno havia me chamado atenção. Era um úmero de cerca de 25 cm.
– “Canis”? – questionou minha irmã, em alusão a ‘canis familiaris’, nome técnico do cachorro doméstico.
– Bem… supostamente você deveria saber melhor do que eu – o que afinal não era tão certo assim: ela é geneticista humana, e nunca teve muito interesse por nada que saísse da esfera molecular.
A curiosidade pelo resto do corpo era, agora diante daquele osso que dava o toque concreto que faltava ao relato, grande demais para que muita atenção fosse dada àquela peça. Mais um par de metros e adentramos no terreno. O murinho tinha uma interrupção, como que um portão e, pelo relato, era logo na entrada que se encontrava o corpo. De fato, lá estava ele – ou melhor, o que havia restado dele.
Os abutres já haviam praticamente terminado seu trabalho natural, e pouco restava da carcaça a não ser a cabeça e restos do gradil costal, com alguns restos de membros quase perdendo a ligação com o corpo. De cara chamou-me atenção o focinho. Sim, era um focinho. Foi a primeira foto que fizemos: a visualização não é das melhores em virtude de ele se confundir com os restos do saco, mas era um nariz bem preto e ainda um pouco brilhante, bem característico dos cães. Em seguida os dentes – nossa maior curiosidade – também foram registrados. Alí sepultamos a esperança de algo realmente sinistro naquele caso. Os dentes caninos eram, realmente, caninos! Com os devidos cuidos higiênicos rasguei o saco, que parecia ter envolvido todo o corpo no momento da desova – mas que agora envolvia apenas sua cabeça. Pretendia observar melhor a boca e os dentes. Eram dentes de cão, cujo desgaste apontava para um animal adulto jovem, com cerca de 5 a 8 anos. Ao contrário dos relatos havia um focinho, e o crânio era de um cão de grande porte, provavelmente um Dog Alemão, Weinmaraner, Boxer, etc. O formato da escápula que restou (resgitrada na última foto) também era característico dos cães.
Concluindo, reviramos a cena do crime, fotografamos e voltamos para casa. Todas as evidências a respeito da espécie daquele corpo apontavam para o ‘canis familiaris’. Não foi encontrado nenhum sinal estranho, nenhuma característica que não pudesse ser encaixada no perfil canino. O caso parecia concluído. Ao menos quanto ao nosso interesse por aquela carcaça. Ninguém nos convenceria que o chupa-cabra dos “Zinga” (como carinhosamente nós nativos chamamos a Praia dos Ingleses) não passava de um cachorro grande, provavelmente de raça, que teve a infelicidade de ser adotado por pessoas com péssimos hábitos de higiene, sem preocupação com o meio ambiente e a vizinhança, e sem compaixão suficiente para dar um sepultamento digno para aquele desgraçado membro da família.
Interessante também foi reparar no modo como as histórias vão sendo modificadas e os relatos se tornando mais fantásticos com o passar de alguns dias. Quem sabe pela vontade de passar o assunto adiante ou pelas impressões individuais de cada observador, talvez pelo medo… Como se diz aqui na Ilha, “vai-se saber, oh meu querido”!