3i/ATLAS: visitante de outro sistema estelar e fábrica de boatos

A notícia de um gigante vindo das profundezas do espaço interestelar, o 3i/ATLAS, está despertando um interesse genuíno e muito bem vindo para a Astronomia, numa época de tempos difíceis não apenas para a divulgação científica como também para o financiamento da pesquisa em todo o planeta. No entanto, de forma preocupante, também está gerando uma onda de erros de interpretação, exploração sensacionalista e, pior, boatos apocalípticos nas redes sociais.
Há, claro, uma razão subjacente e uma cascata de outros fatores. Vindo sabe-se lá de onde, o objeto mostra uma série de anomalias na comparação com cometas conhecidos da vizinhança do Sistema Solar. Até porque não é um objeto nascido das interações dos mesmo elementos (e seus isótopos específicos) do nosso sistema. E mesmo assim, com a grande atenção que tem recebido dos próprios cientistas no mundo todo, várias dessas “anomalias” do 3i/ATLAS estão encontrando explicações alternativas, baseadas em novos e melhores dados e medições.
Apesar disso, muitos internautas chegaram a dizer que haveria um cometa “enorme” em rota de colisão com a Terra, sugerindo desde teorias de nave alienígena a missões militares secretas para detê-lo. Na realidade, as agências espaciais afirmam que não há qualquer perigo – trata-se de um visitante raro e incomum, mas inofensivo. Enquanto a grande maioria dos cientistas envolvidos na pesquisa do objeto reforça que “o cometa 3I/ATLAS não representa qualquer ameaça à Terra”, seu verdadeiro impacto está na curiosidade científica e no espetáculo visual que o objeto promete, não numa catástrofe global.
O 3I/ATLAS (também chamado C/2025 N1) é apenas o terceiro objeto proveniente de fora do Sistema Solar confirmado em nossa história. Astrônomos já haviam catalogado o cometa ʻOumuamua em 2017 e o cometa Borisov em 2019, e agora somam-se a eles este novo visitante interestelar. O nome revela sua origem especial: o número 3 indica que é o terceiro de sua espécie, e o “I” significa interestelar . Em inglês, a NASA também enfatiza essa raridade: trata-se do “terceiro objeto conhecido vindo de fora do nosso sistema solar” . Esses dados bastam para mostrar que 3I/ATLAS é um achado valioso para a ciência. E também não significam que “só agora” estes “visitantes” estão passando pela nossa vizinhança: similares a eles podem ter circulado nas redondezas no passado, mas o fato é que talvez a vigilância dos céus por modernos instrumentos e os próprios conhecimentos da Astronomia em geral estivessem preparados para classificá-los como tal.
A descoberta e a trajetória incomum do 3i/ATLAS
O cometa foi detectado em 1º de julho de 2025 pelo telescópio ATLAS no Chile, parte de uma rede mundial de vigilância de asteroides. Já nas primeiras observações percebeu-se que sua órbita era hiperbólica – uma curva aberta que indica passagem única pelo Sistema Solar. Traçando seu percurso para trás, os astrônomos confirmaram que ele veio do espaço interestelar . Em outras palavras, 3I/ATLAS “não está preso gravitacionalmente ao Sol” e “continuará sua trajetória rumo ao espaço profundo, sem retornar” .
No momento da descoberta o cometa estava a cerca de 670 milhões de km do Sol. Sua maior aproximação do Sol (periélio) ocorrerá em 30 de outubro de 2025, quando passará por dentro da órbita de Marte, a cerca de 1,4 unidades astronômicas (UA) do Sol . Em contrapartida, ele jamais chegará perto da Terra. Não há risco de colisão com a Terra. Análises orbitais da NASA corroboram isso: o objeto passará a pelo menos 1,6 UA da Terra (cerca de 240 milhões de km) e seguirá numa rota estável , sem qualquer possibilidade de abalroar nosso planeta.
Grande parte da especulação infundada em relação ao 3i/ATLAS começou da análise de sua rota pelo astrofísico de Harvard, Avi Loeb. O cientista, que já publicou um livro defendendo que um antecessor interestelar, o ‘Oumuamua, teria origem artificial e extraterrestre, desde cedo avaliou que a trajetória do novo visitante seria altamente incomum: “…um raro (0,2 % de probabilidade) alinhamento de sua trajetória retrógrada com o plano eclíptico dos planetas ao redor do Sol”, disse, conjecturando que seria uma trajetória improvável, algo planejado para “conhecer” o máximo possível de planetas e evitar uma aproximação maior com a Terra.
Depois disso, e provavelmente inspirados por isso, outros estudos preliminares alegaram coisas incomuns como uma cauda à frente, contra o Sol (ao invés de atrás do objeto), detecção de “níquel sem ferro”, polarização de luz incomum, “aumentos de brilho irregulares” (na verdade, um estudo mais recente apenas descobriu que ele tem formato irregular, como esperado de uma rocha, e está girando em seu próprio eixo, entre — e baseado neles, quase sempre Loeb reforçou sua posição “pró alienígenas”. No entanto, conforme mais cientistas passaram a se dedicar a novos estudos e com melhores dados e medições, a maioria dessas teses tem caído paulatinamente. Seja porque o dado inicial era insuficiente, ou porque os cálculos estavam mesmo apenas errados.
Tanto que, nos seus últimos artigos em seu blog e em entrevistas recentes, a posição de Loeb abrandou. “Até agora, atribuo uma probabilidade de 30 a 40 por cento de que 3I/ATLAS não tenha uma origem totalmente natural”, ele tem dito. E a tendência é esse percentual seguir caindo conforme surgem novos dados.
Características físicas e a composição do visitante
Apesar de vir de longe, 3I/ATLAS se mostra semelhante a um cometa comum em muitos aspectos. Ele possui um núcleo gelado envolto por uma coma – uma espécie de nuvem brilhante de gás e poeira que se forma quando o Sol começa a derreter seus gelos . Por isso também recebeu nome de cometa (prefixo “C/2025 N1”). Imagens de julho de 2025 do Telescópio Espacial Hubble permitiram estimar o tamanho do núcleo: difícil de observar diretamente por causa da coma, mas avaliou-se que pode ter diâmetro entre 320 metros e 5,6 quilômetros . Essa faixa já se alinhava com estimativas de astrônomos como Avi Loeb, que comentou que o núcleo poderia atingir cerca de 5,6 km e massa de 33 bilhões de toneladas. E já foram maiores, de até 20 km. Mas mesmo isso é preliminar. Sem saber sua composição exata ou com imagens mais nítidas, as estimativas ainda tenderão a ser corrigidas.
As observações revelaram também detalhes notáveis na composição do cometa. Dados do telescópio James Webb (e da missão espacial SPHEREx) mostram que 3I/ATLAS é particularmente rico em dióxido de carbono . Essa abundância de CO₂ – muito maior do que a de água – sugere que ele se formou em região extremamente fria de seu sistema original, além da chamada “linha de gelo” de CO₂ . Outros gases e compostos atípicos também apareceram em seu espectro, entre eles a presença inicial de vapor de níquel atômico sem a quantidade correspondente de ferro, algo incomum que intrigou os cientistas.
Embora ainda não haja consenso sobre esse detalhe: alguns pesquisadores explicam que moléculas exóticas (como o carbonil de níquel) podem sublimar seletivamente a baixas temperaturas, liberando níquel e não ferro ; outros preferem manter a questão em aberto até entender melhor. De toda forma, medições mais recentes já encontraram também ferro, indicando que não se trata de algo “industrializado” que contém níquel mas não o ferro, como sugeriram muitos vídeos no Youtube.
Comparações com ʻOumuamua e Borisov
A chegada de 3I/ATLAS reacendeu o interesse público que fora atiçado pelos visitantes anteriores. Em 2017, o ʻOumuamua causou espanto porque não exibia coma alguma e tinha forma alongada e fora do comum – levando à defesa da tese, ao menos por parte Loeb e alguns colaboradores, de que poderia de fato tratar-se de uma nave alienígena.
Em 2019, 2I/Borisov mostrou-se um cometa “padrão”, embora rico em monóxido de carbono, típico de regiões muito geladas. No caso de 3I/ATLAS, ele lembra muito mais Borisov: é claramente um cometa ativo, mesmo quando ainda estava longe do Sol . Como observou até mesmo o SETI Institute, normalmente ligado à busca por sinais de inteligências extraterrestres, “ao contrário de 1I/ʻOumuamua, que não exibiu características cometárias visíveis, o 3I/ATLAS se mostrou ativo desde cedo” .
De fato, já a cerca de 6 unidades astronômicas do Sol (quando a luz solar é bem fraca) 3I/ATLAS apresentava coma e cauda, evidenciando gases voláteis como o CO₂ evaporando do seu núcleo frio. Essa atividade inicial é surpreendente mas não inédita – também ocorreu em outros cometas ricos em compostos voláteis (como certos cometas da Nuvem de Oort) . Em resumo, 3I/ATLAS combina traços conhecidos (cometários, ricos em gelo) e outros incomuns (excesso de CO₂, traços de metais exóticos), mas nada impossível dentro de nossa atual compreensão astronômica.
Redes sociais e boatos virais
A divulgação popular do fenômeno gerou uma enxurrada de teorias conspiratórias e pânico nas redes sociais. Manchetes como “cometa de 7 milhas pode ser tecnologia alienígena” nascem da extrapolação de comentários de cientistas conhecidos, mas logo são distorcidas online. O jornal New York Post publicou em setembro de 2025 uma matéria com o título sensacionalista sugerindo “sistema alienígena” atrás do cometa. Essa matéria foi compartilhada milhares de vezes no Twitter (X) acompanhada de declarações alarmistas sem embasamento. Por exemplo, posts associavam falsamente comentários de astrofísicos ou descreviam missões militares fictícias para destruir o objeto.
Em paralelo, começaram a surgir boatos de que o 3I/ATLAS estaria acelerando além do previsto, ou mesmo emitindo sinais de rádio “codificados”. Nada disso foi confirmado: estudos orbitais oficiais mostraram que não há aceleração anômala detectável (apenas a velocidade normal de um cometa se aproximando do Sol) , e as supostas emissões de rádio provieram de fontes não científicas. A equipe SETI, por exemplo, monitora o cometa em rádio e até o momento não encontrou nenhum padrão artificial – como o próprio Instituto enfatiza, “o 3I/ATLAS está exibindo atividade cometária clara” , ou seja, exatamente o que se espera de um cometa natural.
O que dizem os cientistas
Na visão dos astrônomos, 3I/ATLAS é um “mensageiro de outros mundos”, como destaca o Observatório Nacional: um fragmento que “carrega pistas valiosas sobre a formação de mundos distantes” . A comunidade científica prefere manter um tom cauteloso, amparado em dados e credita as manchetes alarmistas à falta de um entendimento amplo sobre como funciona a ciência: montando as peças uma de cada vez, a partir de dados mais confiáveis.
Por exemplo, o astrônomo do Observatório Nacional Jorge Carvano lembra que “cada um [dos objetos interestelares] é único” e que o estudo futuro desses visitantes deve ajudar a entender outros sistemas planetários . Em relatórios científicos, a informação pode ser mais técnica – mas divulgadores como a NASA e a ESA costumam pontuar os principais fatos: é um visitante de origem extrassolar, passando a boa distância e objeto de campanhas de observação global .
As agências espaciais enfatizam a segurança e o caráter científico do encontro. A página da NASA sobre o cometa lista suas características orbitais e confirma que “o cometa 3I/ATLAS não apresenta nenhum perigo para a Terra e permanecerá muito afastado” . A ESA também participou das observações: suas sondas marcianas ExoMars e Mars Express até o viram de perto em outubro de 2025. Em texto oficial, a ESA afirmou que “estes cometas são absolutamente estranhos” ao nosso Sistema Solar – já que vêm de fora – “mas carregam pistas sobre a formação de mundos além do nosso” .
Nenhuma citação de agência sugere que se trate de algo diferente de um cometa natural. Muito pelo contrário: todas ressaltam a natureza benevolente do visitante e a riqueza científica do acontecimento. Mas isso, lógico, é combustível para as teorias da conspiração. Afinal, como pode um bom conspiracionista acreditar em uma agência governamental e/ou científica, mesmo que em seus projetos trabalhem milhares de pesquisadores em colaboração internacional, não é mesmo?
Teorias de censura e a disputa por imagens
Além das anomalias inicialmente identificadas no 3i/Atlas, causa estranhamento e desconfiança — para quem não está acostumado a acompanhar o campo — a descoberta de como realmente funcionam a pesquisa em Astronomia e a burocracia científica em casos de uso de equipamentos caríssimos de observação.
Apesar da abundância de informações oficiais, a ausência temporária de algumas imagens em alta resolução — sobretudo nas semanas que antecederam o periélio — alimentou novas narrativas sobre uma suposta “censura científica” promovida por NASA e ESA. Canais alternativos afirmaram que as agências estariam ocultando dados “que revelariam uma estrutura artificial” no cometa ou mudanças bruscas em sua rota. Vídeos publicados no YouTube e no TikTok chegaram a afirmar que o Hubble e o Webb “teriam capturado algo metálico”, mas que as imagens teriam sido “retiradas do ar poucos minutos depois”.
O boato ganhou força quando alguns portais da Web noticiaram que observações do telescópio Gemini Sul estavam “temporariamente suspensas” devido a recalibrações de instrumentação. A manchete, no entanto, omitia o contexto técnico: segundo o próprio NOIRLab, as observações foram interrompidas apenas “para ajustes de rotina na sensibilidade do detector”, sem qualquer relação com o 3I/ATLAS. A NASA, por sua vez, respondeu diretamente a perguntas no X (antigo Twitter): “Nenhuma imagem do 3I/ATLAS foi censurada. Todas as observações passam por revisão técnica antes de serem publicadas”, esclareceu o perfil da agência no dia 5 de outubro de 2025.
A Agência Espacial Europeia também abordou o tema. Em comunicado ao ESA Science Blog, o engenheiro de operações Marc Lebeau declarou que “a ideia de censura não faz sentido — todo dado do Mars Express é de domínio público, apenas segue cronograma de liberação”. O atraso, explicou, decorre da prioridade dada às transmissões da missão JUICE, que naquele momento cruzava a órbita de Júpiter. Mesmo assim, as imagens obtidas das sondas marcianas acabaram divulgadas menos de uma semana depois, mostrando o cometa sobre o hemisfério norte de Marte em brilho esverdeado, exatamente como previsto.
Além disso, há o problema do embargo: toda observação é solicitada por uma equipe de cientistas, dentro de uma fila de projetos escolhidos entre dezenas, às vezes centenas. Como autora da proposta, essa equipe sempre tem a prioridade para analisar os dados originais, para fazer seus estudos e publicar um ou mais artigos antes dos dados serem liberados a toda a classe científica ou à população em geral. É quase uma questão de “direito de uso” que, no caso do 3i/Atlas, algumas vezes até foi relevada em benefício da comunidade.
A percepção de ocultamento, portanto, resultou mais da velocidade das redes do que de qualquer operação de silêncio. O pesquisador espanhol Javier Alonso, do Instituto de Astrofísica de Andaluzia, resume bem o fenômeno: “Quando a ciência demora dias para liberar dados calibrados, a internet inventa as respostas no mesmo minuto”. O caso 3I/ATLAS ilustra essa tensão entre o ritmo das agências e a ansiedade do público em busca de revelações instantâneas — um terreno fértil para desinformação, mas também um lembrete de como a transparência científica se tornou parte central da batalha contra as fake news astronômicas.
Além do 3I/ATLAS
O interesse pelo 3I/ATLAS só reforça o aprendizado com ʻOumuamua e Borisov: agora sabemos que o espaço interestelar ocasionalmente nos envia fragmentos antigos para estudar. Cada um desses objetos tem sido diferente e ensina algo novo. A própria ESA prepara missão “Comet Interceptor” para tentar interceptar, um dia, um objeto assim. E mais virão: com telescópios do futuro (como o Observatório Vera Rubin, já iniciando suas operações, e outros), espera-se encontrar visitantes interestelares com maior frequência. Por enquanto ainda são poucos objetos, mas cada um é único e isso nos ajuda a compreender melhor os processos cósmicos gerais.
Em resumo, o 3I/ATLAS nos lembra que o universo é vasto e dinâmico. Ele passa silenciosamente, a bilhões de quilômetros de nós, e nos permite um vislumbre de regiões distantes, sem representar qualquer perigo. Como destacam os cientistas, é uma oportunidade rara de estudar a matéria interestelar sem sair de casa. No lugar de temer a visita, podemos agradecer por ela: é um lembrete de como a ciência desmonta lendas e transforma curiosidades estranhas em compreensão. No fim das contas, 3I/ATLAS mostra que a verdade científica costuma ser mais fascinante do que os boatos que a cercam.