Telescópio James Webb detecta objeto vindo para a Terra? (ou: anatomia de uma conspiração)

Telescópio James Webb detecta objeto vindo para a Terra? (ou: anatomia de uma conspiração)
Telescópio James Webb detecta objeto vindo para a Terra ou anatomia de uma conspiração (arte-montagem com auxílio de IA)
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Vivemos em tempos fascinantes onde a informação se propaga a uma velocidade sem precedentes. Essa vastidão de dados, no entanto, pode ser um terreno fértil para a desinformação e o surgimento de teorias conspiratórias, principalmente aquelas baseadas em descobertas e ferramentas que na maioria das vezes soam como ficção científica para a maioria das pessoas, como é o caso do Telescópio Espacial James Webb (JWST, de James Webb Space Telescope, em inglês).

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Com uma pequena ajuda da linguagem distanciada da Academia, de difícil acesso e compreensão, e o tratamento displicente de veículos de mídia sedentos por cliques e likes, a proliferação de notícias distorcidas, interpretações equivocadas por falta de conhecimento científico e informações de fontes anônimas e não confiáveis, especialmente na internet, contribui para a construção de narrativas fantasiosas que podem rapidamente ganhar ares de verdade.

Essa introdução é um contexto necessário para a analise, a seguir, do surgimento de uma (mais uma!) grande teoria da conspiração, que os entusiastas da Internet estão vendo emergir com uma estrutura típica. O caso em questão, a suposta detecção de um objeto vindo em direção à Terra pelo telescópio espacial James Webb, ilustra com clareza a construção de uma narrativa conspiratória e se constitui uma rica oportunidade de abordar como essas teorias surgem.

Através da análise das fontes fornecidas, podemos acompanhar o passo a passo da construção dessa narrativa, identificando os elementos e as fases envolvidas no processo.

Fase 1: a informação bombástica e a distorção da informação científica

O primeiro estágio na formação de uma teoria da conspiração envolve o lançamento de uma afirmação absurda revestida da distorção de informações científicas legítimas. No caso do JWST, o ponto de partida é uma afirmação feita pelo jornalista Pavo Ibarra, jornalista com 14 anos de experiência, responsável pelo canal Psicoactivo, além de co-apresentador do canal Down to Earth, exclusivamente sobre Ufologia.

Em seu canal, em 16 de setembro, Ibarra afirmou ter recebido “dados confidenciais” de fontes no Congresso norte-americano sobre a detecção de um objeto “supermassivo” pelo telescópio James Webb. De acordo com o jornalista, este objeto estaria corrigindo sua órbita de maneira gradual e precisa em direção à Terra, o que levantou suspeitas de que não se trata de um corpo celeste natural.

“… o que me disseram que estão dizendo às pessoas no Congresso, sim, é que eles avistaram um objeto que não é natural porque ele corrigiu a sua trajetória, que está supostamente se aproximando daqui… “, disse.

A maneira como o jornalista, experiente, apresenta a origem de sua informação é bastante peculiar. Ele usa frases como “o que me disseram” e “é isso que me disseram que estão dizendo às pessoas no Congresso” (sic), mostrando que, se teve realmente acesso a uma informação desse tipo, ela chegou até ele por meio de um intermediário.

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O pacote científico da afirmação sem provas

Alguns dias depois Ibarra foi convidado a participar de uma conversa com outros três participantes em uma live do Canal Vetted.

Acontece que um dos convidados da live era o youTuber “Prof. Simon Holland”, que se apresenta como uma figura de autoridade na internet para questões científicas, da física quântica à engenharia de foguetes — muito embora, não por acaso, seu canal dedique-se a misturar esses temas com UAPs.

No entanto, apesar do título de “professor”, Holland não possui credenciais científicas verificáveis. Sua experiência acadêmica parece realmente relevante na produção de documentários, mas não lhe confere o tipo de conhecimento técnico que se costuma esperar de alguém que faz afirmações contundentes sobre a detecção de objetos celestes, peculiaridades sobre radiotelescópios ou engenharia de foguetes, alguns dos temas preferidos de seu próprio canal.

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Sua principal expertise está na produção midiática, como editor de filmes e documentários. Seu currículo, segundo descreve o popular site de informações de audio-visual IMDb, inclui 4 décadas como um profissional do mercado cinematográfico, trabalhando principalmente como editor. Nascido em 1957 em Hanley, Staffordshire, Inglaterra, e atualmente morando na França, ele trabalhou em produções como Out of the Night – Operation Percy Pink (2018), Apathy for the Devil (1978) e a série de TV Bergerac (1981). Além de sua carreira na mídia, Simon Holland vive atualmente na França e é um piloto privado.

Holland havia sido convidado justamente porque, em seu canal, tem tratado de informações sobre o projeto SETI, com especulações sobre a descoberta de supostos “sinais tecnológicos alienígenas”. Ele se apresenta como alguém com acesso a informações privilegiadas da comunidade científica, citando contatos na ESA e em laboratórios de astronomia, mas, como o colega Pavo, não identifica as fontes de suas informações mais importantes.

Quase sempre a forma de conferir “legitimidade” às especulações é a mesma: uma alegação extraordinária, com links para fontes, algumas das quais realmente científicas, mas que apresentam dados sobre outro tema, ou sobre um projeto mencionado marginalmente, e cuja atuação nem sequer tangencia a informação bombástica.

Com sua intervenção no Vetted, Holland reinterpreta conceitos de astrobiologia e observações astronômicas, sugerindo a detecção de sinais sem base factual, como no caso do “Breakthrough Listen Candidate One” (BLC1), que, embora tenha sido inicialmente intrigante, foi posteriormente descartado como interferência de rádio​, conforme publicado na prestigiosa revista científica Nature.

E faz isso criando um caldo desencontrado que mistura o falecido SETI@Home, a pesquisa SETI tradicional e a iniciativa Breakthrough Listen que, embora sejam todos correlatos, usam técnicas diferentes, equipes diferentes, multidisciplinares, verificadas e auditadas por grupos de cientistas internacionais, software opensource (no caso do SETI@Home), entre outras peculiaridades.

Fase 2: a narrativa sensacionalista e a “confirmação” inexistente

Foi dessa forma que a afirmação original — e carente de qualquer fonte verificável — sobre a suposta detecção de um objeto “massivo”, de Ibarra, somada à “base científica” (ainda que ambas misturem alhos com bugalhos) de Holland, transformaram-se em uma fonte inesgotável de especulações dando margem à criação de ainda mais narrativas esdrúxulas. Inclusive a de que “técnicas de detecção de sinais SETI” recentes tenham gerado imagens do que parecem ser luzes em uma cidade. E, para alguns canais do Youtube, o objeto massivo virou a própria cidade!

Importante notar que aqui começa a caracterizar-se a segunda fase do surgimento de uma teoria da conspiração. É a amplificação da narrativa inicial por meio de interpretações sensacionalistas e falta de rigor na verificação de informações.

Aqui, as redes sociais desempenham um papel crucial. O efeito das plataformas digitais em amplificar teorias sem fundamento se dá em grande parte pela natureza algorítmica dessas redes, que promovem conteúdo baseado em engajamento. Ao buscar informação em ambientes como YouTube ou fóruns, muitos usuários são expostos a conteúdos que reforçam suas crenças pré-existentes, em um fenômeno conhecido como viés de confirmação.

Nesse cenário, a suposta detecção de um objeto pelo JWST acaba se confundindo com outras narrativas populares de teorias da conspiração. A confusão entre o SETI (uma busca ativa por sinais de vida inteligente) e o SETI@home (um projeto colaborativo que utilizava a capacidade ociosa de computadores pessoais para processar dados astronômicos) com o James Webb é um exemplo claro acerca do efeito da falta de conhecimento técnico como transformador de uma narrativa.

O JWST, em contraste, é projetado para observar objetos no infravermelho distante e não para a detecção de sinais de rádio, que é o foco principal do SETI. Essa diferença é essencial, mas é frequentemente ignorada ou propositalmente distorcida em vídeos e postagens que visam aumentar o impacto sensacionalista​.

No podcast “Psicoactivo”, o apresentador utiliza as alegações de Holland como base para construir uma narrativa ainda mais elaborada. Ele cita suas “fontes” anônimas no Congresso dos EUA que estariam cientes de briefings secretos sobre uma descoberta “alarmante” feita pelo JWST. O apresentador sugere que o governo está encobrindo a descoberta do tal objeto “massivo” (e, por causa desse adjetivo, mais urgentemente amedrontador!) em rota de colisão com a Terra, uma narrativa que ecoa a trama do livro de ficção científica O Problema dos Três Corpos. E talvez não seja por acaso.

Fase 3: a consolidação da conspiração

Ao mencionar uma suposta “data de chegada” do objeto misterioso nos vídeos, Ibarra afirma que “suas fontes” (ou melhor, as fontes de suas fontes) estimam que deve acontecer entre 2033 e 2034. E esse intervalo não é aleatório e, provavelmente, tampouco tem a ver com a suposta velocidade ou distância do objeto.

O próprio Ibarra usa como argumento uma entrevista de Matt Ford com Luis Elizondo, o polêmico ex-chefe de um programa secreto sobre óvnis do Pentágono, o AATIP, na qual este se recusa a comentar sobre “rumores de eventos [relacionados a UAPs] que podem ocorrer dentro de 10 anos”. Para efeito de esclarecimento, é importante mencionar, aliás, que desde que surgiu na cena UAP dos EUA, Elizondo vem afirmando que coisas notáveis sobre os UAP serão reveladas nos próximos anos… Sempre os próximos, diga-se.

Agora, no entanto, a narrativa inicialmente vaga e baseada em informações improváveis, sem fontes críveis, ganha força à medida que é repetida e amplificada por outros canais e sites. A cereja do bolo veio de um site respeitável na cobertura da cena política dos EUA, o AskAPol (uma brincadeira com a expressão “pergunte a um político”).

Em um encontro casual após uma votação no Capitólio, o jornalista Matt Laslo, do site AskAPol, perguntou ao deputado americano Andre Carson se ele havia participado de briefings classificados sobre o Telescópio Espacial James Webb. É obvio que o jornalista já tinha ouvido o boato.

Carson respondeu com um “sem comentários”. Essa resposta, embora vaga, serviu para amplificar teorias conspiratórias sobre um possível acobertamento de informações relacionadas a descobertas do James Webb. A recusa em negar a existência de tais briefings, especialmente após a insistência do jornalista, pode ser interpretada como um indício de que há algo a esconder. A matéria do AskAPol, ao invés de desmentir a teoria da conspiração, acabou por reforçá-la ao destacar a falta de transparência por parte de um membro do Congresso norte-americano.

Cabe mencionar, inclusive, que briefings sobre estudos científicos e avanços importantes não são incomuns na Câmara dos Representantes dos EUA. Nem segredo. Em 16 de novembro de 2022 já havia sido realizada uma audiência naquela Casa de Leis sobre os resultados científicos iniciais do Telescópio Espacial James Webb (JWST). A audiência teve como objetivo discutir as descobertas mais recentes do JWST, o impacto destas descobertas na compreensão da evolução do universo, dos sistemas estelares e dos planetas, e as implicações para futuras missões de exploração espacial.

A falta de uma visão crítica

Em toda essa história, há uma clara ausência de análise crítica sobre as dificuldades técnicas envolvidas na detecção de um objeto em rota de colisão com a Terra usando o JWST. O telescópio foi projetado para observar objetos distantes e antigos no universo, capturando luz infravermelha emitida por corpos celestes bilhões de anos atrás.

Seu campo de visão e sua especialização em infravermelho tornam-no inadequado para detectar objetos que estão se movendo rapidamente em direção ao nosso planeta, especialmente em distâncias relativamente “curtas” (astronomicamente falando), como 1, 2 ou 10 anos-luz. Quando o instrumento mal consegue divisar corretamente um planeta inteiro a essas distâncias, o que dir-se-ia de uma nave, ou mesmo algo do “tamanho de uma cidade”, como relataram alguns youtubers.

Para mencionar uma das inspirações claras da nova teoria da conspiração, quem já leu a trilogia completa de “O Problema dos Três Corpos” deve se lembrar da dificuldade envolvida na detecção de uma frota de milhares de objetos e do artifício que o autor, o escritor chinês Liu Cixin, teve que lançar mão para que a Terra pudesse ter pelo menos um vislumbre de seus “rastros”.

Em termos de capacidade, o JWST não é o instrumento ideal para identificar objetos em movimento, como asteroides ou cometas, uma vez que essas detecções requerem observações contínuas e um acompanhamento preciso de suas trajetórias. E cada pequena janela de observação do instrumento é disputada com unhas e dentes por diferentes projetos e equipes de pesquisadores, e cuidadosamente escolhida segundo vários critérios.

Para observações dentro do sistema solar, observatórios baseados em solo e programas como o NEOWISE, que utilizam diferentes tecnologias, são os que estão encarregados de identificar e rastrear objetos próximos à Terra (NEOs). Isso significa que qualquer alegação de que o JWST detectou um objeto interplanetário vindo em direção ao nosso planeta não é apenas tecnicamente improvável, mas também uma grave distorção das suas capacidades​.

A importância da análise cuidadosa

É fundamental analisar criticamente a narrativa apresentada e questionar a validade das informações. Alguns pontos importantes devem ser considerados:

Fontes: A maioria das informações é proveniente de fontes não confiáveis, como o youtuber sem credenciais científicas e o podcast que se baseia em rumores e “fontes” anônimas.

Evidências: Não há nenhuma evidência concreta apresentada para apoiar as alegações. As “imagens de luzes da cidade” nunca foram mostradas e não há nenhuma confirmação independente da detecção do “objeto massivo” pelo JWST.

Viés de Confirmação: A narrativa apela ao viés de confirmação, buscando informações que confirmem as crenças preexistentes e ignorando evidências contrárias. A falta de informações claras é frequentemente interpretada como prova de um acobertamento.

Conclusão

O caso do “objeto vindo para a Terra” detectado pelo JWST é um excelente exemplo para ilustrar como teorias da conspiração se formam e se propagam na era da informação. Através da distorção de informações científicas, da propagação de narrativas sensacionalistas e da exploração da falta de conhecimento do público, constroem-se cenários alarmantes que podem gerar medo e desconfiança.

É essencial ter um senso crítico apurado ao se deparar com informações bombásticas, especialmente na internet. Buscar fontes confiáveis, verificar a veracidade das informações e evitar conclusões precipitadas são medidas fundamentais para evitar sermos enganados por teorias da conspiração.

Apesar de toda a análise acima, preciso fazer uma ressalva: não é impossível ter havido um briefing reservado de congressistas com cientistas ligados ao James Webb. E a razão é simples. Umas das principais finalidades do instrumento é, além de desvendar os mistérios da formação do Universo, perscrutar o Cosmos em busca de bioassinaturas de vida ou tecnoassinaturas de vida inteligente.

Como é facilmente verificável pelo próprio noticiário, muitos papers científicos, além das muitas entrevistas de cientistas reais envolvidos no projeto, há um grande otimismo de que isso poderá realmente acontecer em algum momento nos próximos anos. E, momentos antes da confirmação de uma notícia assim, não seria de se surpreender que alguns políticos, nos Estados Unidos e vários outros países discutissem antes como se preparar para divulgá-la.

Mas é certo que, ao mesmo tempo, centenas, às vezes milhares de equipes científicas independentes estariam debruçadas sobre os dados uns dos outros para confirmar seus achados antes deles virem a público, demonstrados e comprovados. Em geral é assim que a ciência funciona. E isso torna virtualmente impossível manter essa informação restrita a um seleto grupo de escolhidos.

Jeferson Martinho

Jornalista, o autor é empresário de comunicação, dono de agência de marketing digital e assessoria de imprensa, publisher de um portal de notícias regionais na Grande São Paulo, fundador e editor do Portal Vigília.

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