Audiência sobre óvnis nos EUA: mais um passo na abertura controlada?

É difícil lembrar uma audiência pública da Câmara dos Representantes dos EUA com tanta expectativa e atenção mundial quanto a realizada em 17 de maio de 2022, a respeito de óvnis. Ou melhor, sobre UAPs, sigla em inglês de Unidentified Aerial Phenomena; em português, Fenômenos Aéreos Não Identificados. Aliás, a mudança na nomenclatura parece sutil, mas contextualiza todo o encontro.
Não foi à toa que o vice-diretor de inteligência naval Scott Bray — um dos convidados do alto escalão para falar ao subcomitê de Contraterrorismo do Comitê de Inteligência da Câmara — disse que “o banco de dados da Força-Tarefa UAP agora cresceu para conter aproximadamente 400 relatórios. O estigma foi reduzido”.
O leitor mais atento vai lembrar que, em junho de 2021, quando foi apresentado o primeiro relatório oficial do Pentágono sobre o tema, eram apenas 144 registros analisados, supostamente colhidos no intervalo de 2004 e 2021. De lá pra cá, em tese, segundo o depoimento de Bray, os relatos militares já são quase três vezes mais numerosos.
A chave não é o número de casos em si. Mas a chamada “redução do estigma”. Ao longo de todos esses anos, desde o início da chamada Era Moderna da Ufologia, o tema óvni foi desacreditado e desencorajado. A ciência tradicional foi progressivamente convencida a se distanciar. Sobrou a Ufologia, uma espécie de paraciência, heroicamente mantida principalmente por grupos civis que tentam, há quase 75 anos, encontrar um sentido para os bizarros relatos que, pelo menos para a maioria, poderiam indicar algum tipo de visitação extraterrestre.

É exatamente por isso que a nova nomenclatura do fenômeno soa quase como um resumo da nova fase da “Ufologia militar” norte-americana. Entre aspas, porque a Ufologia provavelmente caminha para ganhar também ela outro nome em breve. Ao menos na visão governamental, institucional, e fora do circuito da chamada “comunidade ufológica” internacional.
Além de Bray, outro figurão do Pentágono, entregou mais uma parte da estratégia governamental na audiência. Ronald Moultrie, subsecretário de inteligência do Departamento de Defesa, prometeu aplicar uma “análise científica rigorosa” para estudar a origem dos UAPs através do Grupo de Sincronização de Gerenciamento e Identificação de Objetos Aerotransportados, que é o nome garboso e pouco claro do recém criado órgão de pesquisa dos óvnis, digo, UAPs.
Bray e Moultrie até levaram aos congressistas imagens mais ou menos conhecidas, alguns vídeos polêmicos de registros de objetos voadores não identificados feitos por pilotos militares. Os vídeos de sempre, sutis, sem definição ou identificação possível. Mas fizeram a lição de casa e pareciam estar preparados para duas coisas, basicamente. Primeiro alimentar uma plateia ávida por “revelações de segredos”, bem ao gosto de uma tradição histórica da Ufologia que representa uma pedra no sapato da política de excessivo segredo desde sempre exercida pelo governo norte-americano. Segundo, reforçar que a nova “iniciativa óvni” — ops, ato falho de novo, UAP — precisa de mais recursos e mais apoio do Congresso e dos eleitores.

Os porta-vozes do DoD provavelmente saíram de lá podendo comemorar sucesso apenas quanto ao segundo objetivo. Foi praticamente consenso entre os parlamentares que os UAP representam um risco à segurança dos Estados Unidos, sejam eles resultado de um improvável desenvolvimento tecnológico de nações estrangeiras ou qualquer outra coisa. Ênfase no “qualquer outra coisa”. Foi por isso, aliás, que respondendo ao presidente do subcomitê, deputado André Carson, democrata de Indiana, Moultrie disse: “estamos abertos a todas as hipóteses, estamos abertos a quaisquer conclusões que possamos encontrar”.
Audiência pública para não-ufólogos
Enquanto acontecia a audiência, para quem acompanha a Ufologia, políticos e personalidades tradicionais da cena UFO vociferavam críticas à abordagem dos convidados. O congressista republicano Tim Burchetti, do Tennessee, reclamou em sua conta no Twitter que “a audição de OVNIs esta manhã foi uma piada total. Deveríamos ter ouvido de pessoas que podiam falar sobre coisas que viram pessoalmente, mas em vez disso as testemunhas eram funcionários do governo com conhecimento limitado que não podiam dar respostas reais a perguntas sérias”.
Peça chave na mudança de atitude do Pentágono nos últimos anos, quando este passou a admitir publicamente manter projetos de investigação de óvnis e confirmar informações antes secretas, Christopher Mellon, ex-vice-secretário adjunto de Defesa para Inteligência dos Estados Unidos, foi mais um a criticar. “Essa foi uma audiência frustrante, bem como um lembrete de quão longe chegamos e quão longe ainda temos que ir”, tuitou.
Como o relatório de junho de 2021, de fato a primeira audiência pública sobre óvnis da Câmara dos EUA em 50 anos foi frustrante. Ao menos para ufólogos e entusiastas do tema. A plateia quer impacto. Quer a admissão de segredos indizíveis; quem sabe a apresentação de uma navezinha extraterrestre supostamente guardada na Área 51. Talvez até um vídeo de boas vindas de um diplomático alien Gray. Afinal, já faz 75 anos que a Ufologia acumula relatos de que algo assim pode ter acontecido, ainda que nenhuma prova realmente cabal tenha sido produzida até hoje. Não de forma incontestável para 99,99% dos demais não-ufólogos. A narrativa ufológica se retroalimenta de relatos, conspirações, certezas individuais e algumas poucas (mas boas) evidências que nem sempre se encaixam numa explicação simplista, digamos, baseada em metal e carne.
Mas vou voltar ao artigo que escrevi naquela época, em junho de 2021, intitulado “O que o relatório do Pentágono disse sobre UFOs/UAPs e você não viu?”. Dois representantes oficiais do governo, um ano depois, confirmaram que “a maior força tecnológica do planeta, com seus sensores, verbas e cérebros, debruça-se sobre uma coletânea de casos selecionados, com testemunhas qualificadas e registros de diferentes sensores, e simplesmente não consegue apresentar uma explicação”.
Se você é ufólogo, entusiasta ou ávido leitor do Portal Vigília, esqueça por um instante que já leu teorias de que os militares sabem de tudo. Que têm artefatos comprovadamente alienígenas em mãos; ou quem sabe têm até naves desenvolvidas com tecnologias adquiridas por engenharia reversa de discos voadores. Até porque essas são apenas teorias. Algumas até interessantes, quando alinhavadas com um ou outro depoimento mais ou menos confiável. Mas nenhuma delas foi suficiente para vencer o estigma do fenômeno óvni nos últimos 75 anos. E elas nem mesmo são consenso entre as principais linhas de abordagem da comunidade ufológica.
Então, o que o Pentágono confirmou na nova audiência é que, para além dessas teorias, existe um fenômeno bem real, fascinante e preocupante, acontecendo bem diante dos mais modernos sensores de monitoramento da Terra. Uma manifestação registrada por algumas das mais capacitadas e treinadas testemunhas do planeta. E disse isso diante de uma cobertura de imprensa global, como pouquíssimas vezes vimos acontecer ao longo desses 75 anos da Era Moderna da Ufologia. Isso não é pouca coisa.
Tudo indica que a abertura gradual para o tema segue seu curso, lento e constante. E isso passa por conversar com a comunidade leiga. Como o eleitor só conhece UFOs pelas anedotas de sempre. É preciso apagar a imagem de homenzinhos verdes e limpar a pista para outros grupos, como os cientistas, por exemplo, definitivamente embarcarem na nave.
Só não está claro ainda se trata-se de fato de uma ação efetivamente calculada, planejada. Uma busca, por exemplo, pelo envolvimento de novas mentes e capacidades para destravar uma pesquisa que há 50 anos não produziu resultados práticos (caso contrário estaríamos dando voltas em Marte com discos voadores!). Ou apenas efeito colateral de uma ação destrambelhada, de quem busca apenas mais uma fonte de financiamento para projetos militares obscuros.
Seja qual for a resposta, não será mais possível, a partir de agora, recolocar o gênio de volta na lâmpada. Bem vindo(a) à “nova era Ufologia”. Seja lá o que ela está se tornando.
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