Audiência no Congresso dos EUA interroga denunciantes UAP e termina sem provas

Na segunda audiência pública desse tipo em dois anos, depoimentos de quatro “denunciantes” sobre Fenômenos Anômalos Não Identificados (UAPs, sigla em inglês) foram ouvidos no dia 13 de novembro de 2024 na Câmara dos Representantes dos EUA. A instituição é o equivalente à Câmara dos Deputados, no Brasil, uma das casas do Congresso norte-americano. A audiência foi presidida pela deputada republicana Nancy Mace, e foi convocada de forma conjunta pelos Subcomitês de Segurança Cibernética, Tecnologia da Informação e Inovação Governamental, e de Segurança Nacional, Fronteira e Relações Exteriores.
O principal objetivo do encontro foi investigar alegações de acobertamento governamental sobre UAPs, apurar a natureza e origem desses fenômenos e avaliar os riscos que eles representam para a segurança nacional dos EUA. Desde o início, a atmosfera na sala era tensa, com a expectativa de que novas informações viessem à tona após meses de especulação e revelações de delatores.
As testemunhas, sob juramento, foram: o Contra-Almirante aposentado Dr. Timothy “Tim” Gallaudet, ex-Oceanógrafo da Marinha e CEO da Ocean STL Consulting; Luis Elizondo, ex-oficial do Departamento de Defesa e autor do best-seller sobre UAPs “Imminent: Inside the Pentagon’s Hunt for UFOs”; Michael Shellenberger, jornalista investigativo e autor de uma recente reportagem sobre programas de acesso especial, incluindo um supostamente chamado “Immaculate Constellation”; e Michael Gold, ex-oficial da NASA e membro da equipe independente da NASA para o estudo de UAPs.
Gallaudet, em seu depoimento, descreveu um incidente ocorrido em 2015, durante um exercício naval em que “objetos desconhecidos quase colidiram com aviões militares americanos”, um evento que, segundo ele, foi “minimizado e encoberto pela Marinha”. O Contra-Almirante relatou ter enviado um email para diversos oficiais da Marinha questionando se as aeronaves envolvidas no quase-acidente estavam participando de algum tipo de demonstração tecnológica secreta, mas o email “desapareceu” misteriosamente, e o incidente nunca foi investigado a fundo. Gallaudet expressou preocupação com a falta de transparência e a aparente desconsideração da Marinha em relação à segurança dos pilotos.

Elizondo, por sua vez, afirmou categoricamente que “UAPs são reais” e que “tecnologias avançadas não produzidas pelo nosso governo – ou por qualquer outro governo – estão monitorando instalações militares sensíveis em todo o mundo”. Ele argumentou que os EUA estão em uma “corrida armamentista secreta de décadas”, financiada por “dólares dos contribuintes mal alocados e ocultos de nossos representantes eleitos e órgãos de supervisão”. Elizondo relatou ter assinado um acordo de confidencialidade com o governo há três anos que restringe sua capacidade de discutir detalhes sobre programas de recuperação de UAPs acidentados, mas afirmou estar “disposto a fornecer mais informações em uma sessão fechada”. Ele também mencionou a existência de “funcionários do governo que foram feridos por UAPs, colocados em licença e recebendo indenização do governo por seus ferimentos”, questionando como o governo pode negar a recuperação de naves se está pagando indenizações a pessoas feridas por elas.
Shellenberger concentrou seu depoimento nas “falhas e inconsistências do relatório histórico do governo sobre UAPs”, argumentando que o Pentágono e a comunidade de inteligência estão deliberadamente “ocultando informações cruciais do público”. Ele apresentou um documento de 12 páginas (11, já que uma delas está em branco), supostamente vazado por um funcionário do governo, descrevendo um programa secreto chamado “Immaculate Constellation”, que coletaria dados sobre UAPs de diversas fontes, incluindo satélites, radares e inteligência humana. Shellenberger criticou a “cultura de sigilo excessivo” em torno do tema dos UAPs, afirmando que “o público americano tem o direito de saber a verdade”. (Link direto para o documento completo: HHRG-118-GO12-20241113-SD003).

Gold, em sua fala, defendeu uma abordagem “científica e transparente” para a investigação de UAPs, enfatizando a necessidade de “coletar dados de alta qualidade e analisar as evidências sem preconceitos”. Ele destacou a importância do “Sistema de Relatórios de Segurança da Aviação da NASA” como uma ferramenta valiosa para coletar relatos de pilotos sobre UAPs de forma confidencial e não punitiva, argumentando que a “remoção do estigma em torno do tema é essencial para encorajar a participação de testemunhas e obter dados mais precisos”.
A audiência foi marcada por momentos de tensão e questionamentos incisivos por parte dos congressistas. Em um dos momentos mais marcantes, a Deputada Anna Paulina Luna pressionou Elizondo sobre a identidade do país que teria iniciado o primeiro programa de engenharia reversa de UAPs. Elizondo se recusou a responder em uma sessão aberta, mas se dispôs a discutir o assunto em uma sessão fechada.
Em outro momento, o Deputado Tim Burchett questionou Shellenberger sobre a veracidade do documento atribuído ao programa “Immaculate Constellation” e sobre a identidade do autor. Shellenberger afirmou ter “confiança na autenticidade do documento e nas fontes do autor”, mas se recusou a revelar a identidade do autor em público. O Deputado Jared Moskowitz questionou o “sigilo excessivo” em torno do tema dos UAPs, perguntando a Gold: “Por que é tão difícil? Por que as pessoas relutam tanto em falar sobre isso?”. Gold respondeu que a “combinação de medo do ridículo, desconfiança nas instituições e receio de represálias cria um ambiente tóxico que impede a discussão aberta e honesta sobre UAPs”.
A audiência terminou com a promessa de novas investigações e a certeza de que o tema dos UAPs continuará a ocupar um espaço central no debate público nos EUA. A pressão por transparência e a busca por respostas sobre a verdadeira natureza desses fenômenos prometem intensificar nos próximos meses, com o Congresso assumindo um papel cada vez mais ativo na investigação.
Frustração, falta de transparência e a “regra do Clube da Luta”
A frustração dos deputados com a falta de transparência por parte dos depoentes se tornou palpável à medida que a audiência progredia. O Deputado Jared Moskowitz, em um momento de exaspero, fez uma analogia ao filme “Clube da Luta”, questionando a regra central do filme – “A primeira regra do Clube da Luta é: você não fala sobre o Clube da Luta” – para ilustrar a dificuldade de extrair informações concretas sobre os UAPs. “Parece que temos um ‘Clube da Luta’ do governo acontecendo aqui”, ironizou Moskowitz.

Um pouco antes, ao interrogar Elizondo sobre sua participação em programas de recuperação de UAPs acidentados, a deputada Nancy Mace já havia perguntado: “Você está inserido em programas secretos de recuperação de UAPs acidentados?” Elizondo, visivelmente constrangido, respondeu: “Teríamos que ter uma conversa em uma sessão fechada, senhora. Assinei documentação há três anos que restringe minha capacidade de discutir especificamente recuperações de acidentes”.
Essa resposta, emblemática da postura evasiva dos depoentes, evidenciou a frustração crescente dos congressistas, que, ao contrário da audiência anterior com David Grusch, mostraram-se mais incisivos em sua busca por informações. Nomes, datas e menções concretas foram exigidos, mas as respostas, em sua maioria, foram permeadas por negativas, ressalvas e alegações de limites legais e receios. A sombra de David Grusch, que, apesar de ter prestado juramento, também se esquivou de fornecer provas de suas alegações, pairou sobre a audiência, reforçando a percepção de que a cultura de sigilo e a relutância em compartilhar informações persistem, mesmo em um ambiente formal e sob juramento.
A Constelação Imaculada: documento misterioso alimenta o debate
Em meio à frustração dos deputados, o documento mencionado por Michael Shellenberger injetou uma a dose extra de mistério e controvérsia na audiência. Atribuído a um suposto programa secreto chamado “Immaculate Constellation” – “Constelação Imaculada”, em tradução livre –, o documento descreve uma série de casos de UAPs e atividades governamentais relacionadas a esses fenômenos. O documento, que Shellenberger alega ter recebido de uma fonte anônima, rapidamente se tornou o centro das atenções, alimentando debates acalorados tanto entre céticos quanto entre entusiastas da Ufologia no pós-audiência.
Segundo o documento, o programa “Immaculate Constellation” seria responsável por coletar e analisar dados sobre UAPs de diversas fontes, incluindo satélites, radares e inteligência humana. Ele menciona casos específicos, como a observação de um UAP em forma de “água-viva” na fronteira entre os EUA e o México, supostamente detectado por uma aeronave de vigilância. O documento também descreve incidentes envolvendo UAPs que teriam interferido em testes de mísseis e sistemas de armas nucleares.
Apesar da atenção que recebeu, o documento “Immaculate Constellation” carece de elementos que comprovem sua autenticidade e ligação com o governo americano. Não há qualquer indício de autoria ou informações — como datas, locais e horários — que permitam a verificação independente dos casos relatados. As datas são vagas, os locais imprecisos e a linguagem utilizada, com apelidos para os formatos de UAPs — como “Jellyfish”, “Tic Tac” etc, em referência aos formatos observados — soa muito similar aos apelidos que a comunidade ufológica prontamente adotou nos mesmos casos ou casos similares, e totalmente estranha ao vocabulário militar e de inteligência.
A falta de comprovação não diminuiu o impacto do documento. Ele se transformou em uma espécie de tábua de salvação para os entusiastas da Ufologia, que veem nele a confirmação de afirmações passadas, além de um novo alvo de interesse para os céticos. A “Constelação Imaculada”, ao que parece, veio para turvar ainda mais as já nebulosas águas do debate sobre a existência de UAPs e a transparência do governo americano.
O escrutínio do documento aparentemente não resistiu a um único dia. Hoje, 14 de novembro, no momento em que esse texto era finalizado, Jesse Michels, no Twitter, garante ter esclarecido o que era a 12ª página faltando no documento: “uma carta de apresentação do grande (sic) Jeremy Corbell que desempenhou um papel fundamental no pretexto para a audiência”. Se isso for confirmado, a peça nem mesmo foi encaminhada à audiência por Shellenberger, mas pelo próprio cineasta, jornalista e entusiasta da Ufologia Jeremy Corbell, o que certamente vai resultar em mais desconfiança quanto à sua autenticidade.
Here is the missing “12th page” of The Immaculate Constellation docs provided to Congress yesterday. It was a cover letter by the great @JeremyCorbell who played a foundational role in the pretext for the hearing and should also get credit 👇🏻 pic.twitter.com/9IvMParX4Q
— Jesse Michels (@AlchemyAmerican) November 14, 2024
Reações e um novo capítulo: agora no Senado
A audiência, apesar da total falta de substância nas novas afirmações, reverberou nas redes sociais, especialmente no X (antigo Twitter). O deputado Eric Burlison, em uma publicação no X, destacou o que considerou as revelações mais importantes da audiência: a alegação de que a Lockheed Martin estaria transferindo “tecnologia não-humana” para a Bigelow Aerospace, a menção a “corpos alienígenas” recuperados pelo Pentágono e a afirmação de que o governo americano teria se comunicado com formas de vida não-humanas. Burlison, em sintonia com o sentimento de frustração expresso durante a audiência, reforçou a necessidade de transparência por parte dos órgãos governamentais.
Nancy Mace, por sua vez, celebrou a abertura de um “novo capítulo” nas investigações sobre UAPs. Em sua publicação no X, ela ressaltou a importância de proteger os denunciantes e garantir que o povo americano obtenha as respostas que merece. Mace, assim como Burlison, deixou claro que a busca por transparência não se encerrará com essa audiência.
I think we opened the door for additional hearings, & how we need to protect our whistleblowers as we get the answers the American people are owed. #UAPHearing https://t.co/pui19opnhc
— Rep. Nancy Mace (@RepNancyMace) November 13, 2024
Mick West, conhecido por sua postura cética em relação à hipótese extraterrestre, convocou o AARO (All-domain Anomaly Resolution Office) a tornar públicos os vídeos mencionados no documento “Immaculate Constellation”. West, em sua publicação no X, argumentou que a divulgação dos vídeos e das análises do AARO seria crucial para esclarecer a natureza dos UAPs.
John Greenewald Jr., criador e mantenedor do site The Black Vault, pesquisador focado em obter documentos governamentais por meio da Lei de Liberdade de Informação (FOIA), manifestou sua frustração com a cultura de sigilo que envolve o tema dos UAPs. Respondendo a uma publicação de Nancy Mace no X, Greenewald Jr. afirmou que, em seus 28 anos de pesquisa e após ter protocolado quase 11.000 pedidos de FOIA, nunca se deparou com um nível de sigilo tão elevado como o que envolve os UAPs. Ele se colocou à disposição do Congresso para compartilhar os documentos que obteve por meio da FOIA, na esperança de contribuir para a elucidação do tema.
“A espessura do segredo e a obstrução são frequentes demais nesta questão para serem ignoradas. (…) Sinto fortemente que é hora de descobrir o que é real, o que não é, e responsabilizar as agências governamentais e sua liderança pelo que é comprovadamente evidente: as inúmeras camadas de sigilo que eles estão usando para nos proteger, nós, o povo, da verdade. E de um ponto de vista legal? Não acho que tudo se justifique.”, declarou Greenewald.
Em sua declaração no X, após a audiência na Câmara, Greenewald expressa sua convicção de que as audiências sobre UAPs devem começar a convocar os líderes das agências de inteligência – as “agências de três letras”, como são popularmente conhecidas – para prestar contas sobre o sigilo excessivo que envolve o tema.
A audiência na Câmara dos Representantes, apesar de ter deixado muitas perguntas sem resposta, serviu como um catalisador para um novo capítulo nas investigações sobre UAPs. Uma nova audiência, desta vez no Senado, já foi agendada para o dia 19 de novembro. A audiência, presidida pela Senadora Kirsten Gillibrand, promete colocar o AARO sob os holofotes e, quem sabe, lançar alguma luz sobre os misteriosos UAPs. A expectativa é que a Senadora Gillibrand, conhecida por sua postura pró-ativa na busca por transparência no tema dos UAPs, conduza uma investigação mais profunda e obtenha respostas mais concretas do que as fornecidas na audiência da Câmara.
Mas uma coisa está clara: a classe política dos EUA — e a comunidade em geral — estão se cansando da retórica de sempre: das afirmações bombásticas sem lastro documental ou evidência física. O debate sobre os UAPs está longe de se encerrar, mas a pressão por transparência e a busca por respostas só tendem a aumentar. Resta saber se essa pressão recairá sobre as agências do governo em si, ou sobre os depoentes e a prática de afirmar coisas que não conseguem provar. Ou sobre ambos.
Todos os documentos apresentados pelas testemunhas ou submetidos para a apreciação do deputados estão disponíveis neste link.
A audiência completa, com legendas em português, pode ser assistida abaixo: